Considerando as técnicas de desenfeitiçamento expostas anteriormente, em especial as de reclamação (construir espaços de vocalização; desconfiar da flecha sangrenta do progresso; se responsabilizar) e proteção (não ferir os sentimentos estabelecidos; guardar segredo), utilizei o trabalho com sangue menstrual como ferramenta metodológica para realizar os experimentos com o objetivo de evocar os materiais de pesquisa. 

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Uma amiga minha me contou a seguinte história: ela e a família se mudaram para uma casa alugada. A casa era lindinha, grande e arejada, em um bairro bem tranquilo. Contudo, os dias foram passando e foi ficando cada vez mais óbvio que tinha algo esquisito ali. O clima dentro da casa era pesado, dava para sentir. Chegava a dar um nó na garganta, coisa de estar tranquila na cozinha e sentir um arrepio que gelava o corpo todo e escurecia a vista. A única solução era correr para o quintal para dar uma respirada. Assuntando na vizinhança, descobriram que antes deles, morava ali uma família. Pai, mãe e filhos. O homem e a mulher brigavam muito. Até o dia em que ele chegou em casa de madrugada e tentou matá-la. Ela conseguiu trancar os filhos e escapar pela janela do segundo andar. Ele foi temporariamente preso, e ela e as crianças sumiram. A tragédia passou de raspão.

 Depois de descobrirem essa história, minha amiga e as mulheres de sua família começaram uma força-tarefa para recuperar a casa. Ela me contou que foram dias e dias de faxina intensa, muita água no chão, muita vassoura mandando pra fora tudo o que estava parado ali. Dias cuidando da casa, trabalhando nela até que ela se recuperasse. E assim foi. Elas trabalharam e a casa ficou em paz.

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Em sua tese, Humberto Manoel de Santana Júnior apresenta uma etnografia sobre encontros e acertos feita com entidades de um terreiro de candomblé. Ele descreve o “trabalho” como um meio de comunicação, podendo algumas vezes ser usado como sinônimo de “feitiço” e “ebó” (oferenda dedicada aos Orixás). Trabalho são “ações práticas de composição entre o lado espiritual e o lado encarnado com intuitos diversos, seja abrir caminhos, proteção, entre outros” (Santana Junior, 2021, p. 43). Perguntei à Raquel, minha irmã espiritual a quem confio a leitura de meus caminhos, por que usar a palavra “trabalho”. Raquel é uma bruxa, formada no candomblé. Ela me respondeu que fazer rezas e oferendas é um ato laboral em que se gasta tempo, além do desgaste físico que é lidar com as cargas espirituais envolvidas. 

Para que um trabalho seja feito, são necessárias várias etapas de preparação. Normalmente, a primeira delas é uma consulta oracular, passando pela busca dos materiais necessários (o que pode ser demorado e custar tempo e dinheiro), até a execução do trabalho em si. Rezas, produtos, plantas, animais, rios, mata, asfalto, o trabalho congrega uma diversidade enorme de coisas. Todo processo de realização de um trabalho é um momento especial, no qual o pedido-demanda que motiva as ações realizadas está presente não somente no ato de realização do trabalho em si, ou emerge como consequência deste, mas permeia todo o processo. Muitas vezes é justamente no processo que estão escondidas as pistas do que precisamos fazer para resolver uma querela. Veja, por exemplo, a lista de coisas necessárias para fazer um trabalho para ter proteção (Montenegro, 2011, p. 18): 

Para que o trabalho seja feito, é necessário se colocar em movimento junto com, em uma espécie de dança entre pessoas, energias, coisas, lugares, tempos, espaços e os mais heterogêneos seres não humanos. Fazer trabalho com o sangue menstrual é uma ferramenta metodológica que provoca e facilita tais movimentos. É importante reforçar: a menstruação e o sangue menstrual nesta tese não são tema de pesquisa, e sim materiais de trabalho. E, como explicitado acima, o trabalho feito para des.enfeitiçar depende fortemente da materialidade da realidade. Trabalho também é o nome que se dá para a feitura de uma peça de artesanato, um tipo de produção que ainda escapa, ainda que parcialmente, da lógica da mercadoria e seu feitiço. Fazer trabalho com o sangue menstrual é também uma forma de estabelecer comunicação a partir de algo material e de sua uma dimensão sensível. Como será possível observar na descrição e análise dos experimentos realizados, fazer trabalho com o sangue menstrual foi fazê-lo aparecer em sua materialidade e sensibilidade, mas também foram todas as etapas necessárias para a preparação do trabalho, ou seja, todo o movimento realizado para a obtenção e manipulação do sangue menstrual. As pistas de ações possíveis para desfazer o feitiço e fazer com que a menstruação seja algo com que possamos pensar e agir aparecem não somente no resultado, mas em todo o trajeto

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Estávamos no pé de uma ladeira pequena e escura, toda de pedra, em algum lugar do Rio de Janeiro. Em um samba na rua, obviamente. Estávamos sentados nas franjas da festa, conversando. Mostrei para um amigo o caleidoscópio, um dos experimentos. Esse era o modo que encontrei de falar sobre minha pesquisa, mostrando o caleidoscópio. Ele viu e me contou a seguinte história:

Eu morava em um desses prédios perto da universidade, com várias kitnets que eram alugadas para estudantes. Uma das minhas vizinhas guardava o sangue menstrual dela em um pote de plástico. O pote ficava em cima de uma mesa na sala, e todo mês ela abria e colocava o sangue que estava no coletor menstrual. Ela ficou uns dois anos assim, guardando o sangue no pote sem nenhum tipo de acondicionamento especial nem nada. Até que um dia alguém do prédio fez algo ruim para ela, e ela ficou muito, mas muito brava. Ela entrou em casa, pegou o pote, abriu a tampa e jogou tudo o que tinha dentro em cima da pessoa.

Não sei se foram as batidas do samba ou sei lá o que, mas quando ouvi essa história uma peça se encaixou na minha pesquisa-quebra-cabeça. Eu mostrei o caleidoscópio para meu amigo, mostrei meu sangue, fiquei ali vulnerável diante dele. E ele me devolveu essa história. Ali entendi que eu estava fazendo trabalho com o sangue, e que essa era uma ferramenta metodológica para mim. Contei essa história para Naedja, pesquisadora da menstruação e minha companheira no Labirinto. Ela me ouviu em silêncio, séria. Ela também conhece a materialidade do sangue menstrual, e o que ele pode fazer. Quando terminei, ela esboçou um sorriso incontrolável e com a voz firme e rápida, disse:

nunca mexa com alguém que guarda seu próprio sangue